Depois de março
“Prefiro não contratar mulheres com filhos pequenos ou que pretendem engravidar por agora”
“Me pediram uma indicação para essa vaga, mas tem que ser homem”
“O último salário dela é bem inferior ao da vaga e ela está desempregada. Podemos contratá-la com um salário mais baixo, no início da faixa. Assim ganhamos um “fôlego” no orçamento”
Você já vivenciou, presenciou ou tomou conhecimento de alguma situação similar a pelo menos uma das expressões acima? Acredita que são situações comuns que podem fazer sentido dependendo do contexto? Já parou para pensar nos impactos disso?
Encerramos mais um mês de março, dedicado a conversas e debates sobre a mulher. Um mês que, para muitas pessoas, ainda é a época dos mimos, flores e bombons, de colocar as mulheres para falarem nos eventos da empresa e de dar uma atenção especial a elas. Mas e depois de março, o que muda?
De acordo com a análise publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), baseada nos dados da PNAD Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres seguem em desvantagem no mercado de trabalho em relação aos homens. No segundo trimestre de 2019, a taxa de ocupação delas (46,2%) era inferior à do sexo masculino (64,8%). No mesmo período de 2020, houve redução para 39,7% no caso das mulheres e 58,1% para os homens. Uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta que, após 24 meses, quase metade das mulheres que tiram licença-maternidade sai do mercado de trabalho, um padrão que se perpetua 47 meses após a licença. E a maior parte dessas saídas ocorre por iniciativa do empregador, sem justa causa. A desigualdade salarial entre homens e mulheres também ainda é um problema. De acordo com os dados do IBGE, em 2020, a população ocupada de cor ou raça branca ganhava, em média, 73,3% mais do que a de cor ou raça preta ou parda e os homens, 28,1% mais que as mulheres, mesmo com formação e experiências similares e desempenhando as mesmas atividades. Apesar de já identificarmos no mercado algumas ações com o objetivo de reduzir e eliminar essas desigualdades, elas ainda permanecem.
Atualmente, podemos observar ações afirmativas realizadas nas empresas como, por exemplo, a definição de metas de contratação e vagas específicas para mulheres. No entanto, de quais mulheres estamos falando? Quando olhamos para o resultado dos programas que já existem, qual é o perfil das mulheres que estão sendo incluídas? Basta fazer um exercício bem simples para perceber que ainda estamos falando de um padrão. Quantas mulheres trans e travestis trabalham ou já trabalharam com você? E mulheres pretas, com deficiência ou que moram em regiões periféricas? Elas estão presentes na empresa em que você trabalha? Se sim, quais posições elas ocupam nessa empresa? Qual é o perfil mais presente nos cargos mais altos? Podemos perceber que este padrão de mulheres que estão ocupando cada vez mais espaço nas organizações ainda é formado por mulheres cisgênero, brancas, com menos de cinquenta anos e sem deficiência.
“Eu quero outras como eu, eu quero outras que não são parecidas comigo, mas que ainda vem insistentemente sendo impedidas de chegar. Porque ou a liberdade é indivisível, ou ela é nada além da repetição de slogans e de alguns avanços temporários, míopes e passageiros, para poucas.” (Grazi Mendes)
Enquanto não houver um entendimento de que resolver esse problema de desigualdades precisa ser prioridade na agenda das organizações, as pautas de março serão sempre as mesmas e nos deixarão na ilusão de que estamos evoluindo na velocidade que podemos enquanto sociedade. Falando nisso, se continuarmos nesse ritmo, de acordo com o Global Gender Gap Report 2021, somente em 267 anos as mulheres receberão o mesmo salário que os homens.
“O feminismo é um movimento político que reinvidica a libertação da mulher de todos os padrões e expectativas comportamentais baseadas na discriminação de gênero. As conquistas de direitos advindas do feminismo não são um “dado espontâneo e natural”, mas um constructo, uma criação que depende de pleito e vigilância, senão acaba que podem ser revogados com o tempo pela força dos setores opressores que se beneficiam das injustiças sociais”. (Jacilene Silva)
Resolver esses problemas é uma responsabilidade exclusiva das empresas?
Entendo que estamos falando de um problema complexo e que, por isso, a solução também não é simples. No meu entendimento, passa por questões políticas e que envolvem poderes público e privado. Por isso, o diálogo entre essas diferentes frentes para pensar coletivamente em possíveis soluções e a nossa crítica para escolher, de forma consciente, as pessoas que elegemos para nos representar nesse diálogo, tornam-se fundamentais.
É importante lembrar que as organizações são formadas por pessoas e para pessoas e cada pessoa, que se identifica ou não como mulher, pode e deve fazer parte dessa solução, independente da posição que ocupa na empresa. No seu nível de autonomia, até onde você consegue alcançar, por exemplo, sempre há algo que pode ser feito. Desde começar a questionar crenças limitantes e sexistas até rever prioridade de investimento financeiro e de energia dedicada a isso. No entanto, caso não haja interesse por parte das pessoas que ocupam posições de poder e que tomam decisões, as mudanças ainda serão pontuais e morosas.
“O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente a constituição dos lugares de grupos subalternizados.” (Djamila Ribeiro)
Chegamos ao fim de mais um mês de março. Vamos esperar o próximo ano para voltar a discutir esses assuntos, ou vamos utilizar a agilidade a nosso favor para fatiar esse problema e priorizá-lo como algo importante que precisa ser resolvido? O nosso ciclo de aprendizado e adaptação, visando a melhoria contínua da nossa sociedade como um todo com inclusão da diversidade em todos os seus espaços, não pode ser anual.
“Pra que amanhã não seja só um ontem com um novo nome” (Emicida)